Um testemunho (muito) pessoal
Terça-feira, 10 de março de 2020, 7 horas da manhã. Chegam as mensagens e telefonemas de Acácio de Brito e Filipe Silva, meus amigos de Timor-Leste, com um alerta inesperado e uma notícia marcada por uma lancinante tristeza. Faleceu o Cabé, quando viajava desde Ainaro em busca de apoio médico em Díli. Falei com os amigos lá do bairro, com o João (irmão gémeo inseparável do Cabé), com a Paula (companheira e amiga – porto seguro) e com os amigos de Timor. Precisava falar.
Quando em 2017 fui para Timor-Leste ao serviço do Banco Mundial, para liderar a equipa que elaborou o relatório “Análise do Sector da Educação em Timor-Leste” fui falar com o Cabé. Estava em Timor há alguns anos e sabia tudo sobre a vida no país. Foi ele que me deu os primeiros conselhos sobre as atitudes e os comportamentos adequados de um Português naquela encantadora ilha, junto dos nossos irmãos Timorenses. Após a minha chegada, o Cabé e a Paula, faziam questão de vir semanalmente de Maliana a Díli, num jeep alugado, 3 horas de viagem para os 100 km de caminho, só para estarmos juntos ao fim de semana. Foi com o Cabé que fui conhecendo muitos dos Portugueses de Timor-Leste e reencontrei alguns alunos de outros tempos. Foi ali que relembrámos a infância e a juventude em Portalegre.
O Cabé era uma figura popular desde a escola primária da corredoura em Portalegre até ao liceu da nossa cidade. Fizemos muita coisa juntos e recordo com saudade os lanches preparados pela D. Madalena para os filhos, Cabé e João Manuel, e para mim, nos intervalos das tardes de estudo e trabalhos de casa. E as épicas jornadas do andebol e do futebol do Atalaião. E as festas e os bailes e os nossos primeiros carros e as namoradas e tudo.
O Cabé foi desportista e forcado também. Depois do liceu, fez o magistério e iniciou a sua carreira de professor do ensino primário. Trabalhou na educação de adultos. Fez o curso de sociologia na U. Évora e de administração escolar no Politécnico de Portalegre. Foi um dos grandes entusiastas da introdução dos computadores na educação. Nos anos 80-90 trabalhámos juntos na ESE de Portalegre, principalmente no projecto MINERVA que coordenei com o Mário Ceia e que teve impacto na educação do Alto-Alentejo.
O Cabé foi deputado municipal, foi director de um centro de formação profissional do IEFP, foi membro da comissão organizadora do campeonato europeu das profissões, foi Subdelegado Regional da Delegação Regional do Alentejo do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Preparou a criação de centros de formação profissional em Angola e em Cabo Verde. E, depois de tudo isto, sem problema, voltou à sua condição de professor primário, numa pequena escola na serra de S. Mamede, em S. Julião, na fronteira com Espanha.
Em 2013 foi para Timor-Leste, trabalhar no CAFE – 13 Centros de Aprendizagem e Formação Escolar distribuídos por todo o país que envolvem mais de 200 professores, cerca de 140 portugueses, e mais de 6000 alunos Timorenses. Um projecto da maior relevância para o desenvolvimento da educação em Timor, especialmente na formação de professores, no ensino da Língua Portuguesa e no ensino em Português. O Cabé trabalhou em escolas de Maliana, Oecusse e Ainaro e foi coordenador dos CAFE locais em várias ocasiões. E sei que contribuiu com a sua dedicação e empenhamento para a formação de muitos professores e para o melhor desenvolvimento pessoal e social de muitas crianças Timorenses.
Recordo ainda o entusiasmo com que meteu mãos à obra para levar uma biblioteca de Portugal para Maliana. Moveu montanhas aqui em Lisboa e em Portalegre, nomeadamente junto dos Institutos Politécnicos, e também em Timor Leste em articulação com o então Ministro da Educação António da Conceição e com o então embaixador de Portugal em Díli, Manuel Gonçalves de Jesus, bem como com o actual representante diplomático – embaixador José Pedro Machado Vieira. Os livros chegaram a Díli e depois a Maliana. Justo seria que, estando a funcionar e aberta à comunidade, a biblioteca recebesse o nome de quem tanto pugnou pela sua existência – Carlos Alberto Martins Vintém (Cabé).
Tenho conhecimento de que, tanto o Governo Português, através do ME, da DGAE e da Embaixada de Portugal em Díli, como o Governo Timorense, através do ME e da DGPPP, têm participado nas merecidas homenagens já realizadas e tudo têm feito para assegurar o rápido repatriamento do Cabé. Honra lhes seja feita. O Cabé honrou a participação de Portugal no processo de desenvolvimento de Timor-Leste.
A família do Cabé, os colegas do CAFE e as autoridades de educação, Portuguesas e Timorenses, têm razões de sobra para estarem orgulhosos. Orgulhosos do pai, irmão ou companheiro, orgulhosos pela forma como representou o esforço de Portugal na educação em Timor, orgulhosos pelo contributo que deu à educação das crianças e à formação dos professores Timorenses. Por mim, sinto um enorme orgulho por ter tido um amigo como ele.
Num dos últimos jantares que fizemos em Díli, fomos a um restaurante de um casal luso-indonésio que tem um karaoke. Já noite dentro, lembrei-me que o Cabé também cantava umas coisas, com a afinação aprendida no coro da igreja em Portalegre. Nenhum dos presentes lhe conhecia tal faceta. Aceitou cantar a “menina das tranças pretas” e foi o sucesso da noite. Ao que soube mais tarde, nunca mais houve karaoke sem o Cabé em palco. Por isso, espero que quando nos voltarmos a encontrar nos cantes de novo e nos contagies com a tua alegria.
Até lá Cabé.
Manuel Miguéns,
Secretário Geral do Conselho Nacional de Educação (CNE)
Março de 2020
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